PSICOTEOLOGIZANDO NO LIVRO DE JONAS

Por acreditar no caráter símbólico do livro de Jonas, peço permissão ao exegetas  do Velho Testamento, para tratar a narrativa como se eu estivesse numa sessão psicoterapêutica, diante de um cliente chamado Jonas, que acaba de me contar um sonho.

Trato o sonho como se fosse uma peça de teatro, dividindo o sistema em quatro pontos: Palco ou lugar, personagens, drama e mensagem. Dessa forma, acompanhando as cenas, vamos tentar descobrir o significado das partes e a mensagem do todo.

I- PALCO(S)

1. O lugar do chamamento divino, é claro, está no coração de Jonas (V. 1), portanto, a vocação é de caráter profundo e, por isso, mesmo, numinoso. Mais cedo ou mais tarde, de um jeito ou de outro, todos nós somos abordados pelo Profundo e conclamados a uma jornada para fora de nossa zona de conforto religioso, político, pessoal. Foi assim, também, com Abraão (Gn. 12:1) e com Moisés diante da sarça que não se consumia (Ex. 3:2-5): o fogo de Deus requer atenção, senão arde cada vez mais e, em vez de se consumir, consome.

2. Navio (1:3) - símbolo de jornada psíquica, travessia de um ponto a outro ponto, de um estágio a outro. Isso indica que Jonas, nosso sonhador, está em processo de grandes tranformações psíquicas. Mas, ele toma o navio que segue em direção contrária, simbolizando a magnitude de sua fuga e a possibilidade de consequências trágicas, pois, ele comete uma traição contra o inconsciente, seguindo para longe de seu apoio central. E esse tipo de traição costuma a ATRAIR a fúria da alma.

3. O porão onde Jonas dormia (1:5b). O porão aqui é símbolo do inconsciente, longe das luzes da mente consciente, indicando que Jonas, apesar de estar fugindo, estava inexoravelmente cativado pelo profundo, longe da balburdia dos lugares públicos, onde os homens se debatem tentando aliviar o fardo que o ego costuma acumular. Toda jornada espiritual é precedida de retiro, de recolhimento de rompimento com o lugar público. O profundo nos chama para longe dos holofotes e da balbúrdia: "Aquietai-vos, e sabei que eu sou Deus."

4. Lançado ao mar (1:.15) - Jonas reconhece que sua atitude consciente (atitude de ego) feriu frontalmente seu chamado de dentro, e para dentro. Corajosamente, ele sacrifica o ego e se deixa lançar ao mar, isto é, se abandona aos movimentos das profundezas. Ele sabe que é o catalizador de um movimento de sua própria alma que pode destruir o ambiente. E, muitas vezes, isso ocorre, na família, na igreja, no de trabalho, etc., porque indivíduos agitaram as profundezas com suas atitudes neuróticas e arrastam consigo, na destruição, os filhos, o cônjuge, a igreja, os amigos, o grupo social a que pertence.

5. O ventre do grande Peixe (1:17): Peixe é símbolo de espiritualidade (símbolo do cristianismo primitivo). Estar dentro do peixe significa estar num lugar especial no inconsciente, no espírito,  (I Co. 2:11) onde se dá o encontro com Deus. O santo dos santos, no tabernáculo judáico, representa, também, esse lugar que, no Novo Testamento, é aquele lugar de que Paulo fala em Ef. 2:6: "E nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus."

5. Terra firme (2:10). O inconsciente nos engole, trata de nós, mas nos remete de volta á superfície, transformados e preparados para a retomada da missão. De fato, o lugar de nossa missão original sempre nos atrái e, quando não o alcançamos voluntariamente, ocorre uma conspiração microcósmica, subatômica e espiritual, que nos vomita humilhados, mas em terra firme. O mesmo ocorreu a Elias na caverna (símbolo do inconsciente). Antes, dominado pelo fogo do ego conquistador; agora, recolhido ao silêncio das profundezas, para daí, levantar-se e retomar o serviço da profecia. As grandes revelações só ocorrem no retiro de Patmos, para que possamos entrar transformados em Roma.

6. Em Nínive  (3:3) - Este é o lugar em que o ego não quer estar, mas ao sentir-se chamado e tomado por uma força que o impulsiona a agir, vai e faz. O verdadeiro ministério profético-pastoral é aquele em que o sujeito se sente sequestrado por um chamamento que contraria sua vontade de superfície. Em Nínive, Jonas estava fora de sua zona de conforto teológico e político, pois  a cidade o símbolo do próprio inferno para um judeu piedoso. De fato, a vida pública de um homem de Deus (na linguagem teológica), ou um homem sintonizado com o inconsciente (para usar uma linguagem psicanalítica), é resultado desse encontro no espírito. Não sendo assi, seu trabalho é apenas de um gestor administrativo-relacional de uma organização que usa o idioma da religião. Mt. 7:21,22

II- PERSONAGENS

1. Jonas: Quando se sonha, sonha-se, normalmente, os temas de si mesmo. Por isso, Jonas, no sonho, representa o Jonas real. Jung entendia que ao sonharmos, somos o ator, o palco, o enredo, o cenário, etc. O sonho é a versão do nosso próprio avesso.

2. Os tripulantes do navio - representam o que Jung chama de "sombra", a parte de cada um de nós que é rejeitada, negada, empurrada para o escuro. É nesse sentido que Jesus afirma que eles "não vem para a luz para que as suas obras não sejam manifestas." De fato, Jonas, como todo bom judeu, rejeitava os pagãos, fugia deles "como o diabo foge da cruz." A experiência das ruas e dos consultórios comprova que o nosso avesso está carregado de tudo que conscientemente rejeitamos. Esse conteúdo, mais cedo, ou mais tarde reclama seu lugar e faz barulho para chamar nossa atenção, e quando não lhe damos escuta, volta-se contra nós, sabotando nossa alegria de viver. Como veremos adiante, a salvação só ocorre quando, primeiramente, olhamos na cara do montro que nos habita. Ninguém encontra a luz, sem encontrar-se primeiro com seu próprio escuro.

Mas, a nossa sombra é, na verdade nossa aliada, se formos com ela verdadeiros. Quando Jonas contou a verdade para os marinheiros, eles quiseram salvá-lo. Se nós soubermos lidar com o nosso próprio escuro, teremos mum grande aliado na jornada rumo à individuação, ou salvação, como se queira chamar. É o terror da morte de cruz que salva.

3. O Grande Peixe - Como mencionei acima, peixe é símbolo de espiritualidade, pois, no início da igreja cristã, era o emblema da comunidade cristã. O peixe aqui é vivo e poderoso; não é um peixe morto no mercado, nem uma carcassa na praia, mas um habitante vivo das profundezas. A religião que Jonas tinha na superfície era morta, legalista e formal. Engolido pelo peixe significa ser arrastado para as profundezas da espiritualidade do espírito, a espiritualidade do mistério, da numinosidade, da sarça que não se consome. É desse tipo de espiritualidade de que o mundo sempre esteve faminto, e os crentes de templos, principalmente.

5. Os habitantes [arrependidos] de Nínive - Ao sair transformado do ventre do peixe, Jonas transformou o seu ambiente. Quem é consciente de si, produz consciência nos outros. Que se melhora, melhora os outros ao seu redor. E isso ocorre naturalmente, sem "esforço evangelístico" ou programas de fim-de-semana. Quem é transformado, transforma enquanto caminha (Jonas 3:4,5). Foi assim com Jesus, diante de quem ninguém saía o mesmo: ou encontrava a vida, ou saia para enfrentar o abismo, mas consciente da escolha, como o jovem rico o fez.

III- DRAMA - 

1. A bipolaridade - Consciente e inconsciente fazem parte de um só sistema:  a psique. Quando o sistema opera em harmonia, há saúde, "vida abundante" (Jo. 10:10). Quando em disarmonia, desafina e adoece. No caso de nosso sonhador Jonas, o ego (porção consciente da psique) rejeita qualquer tipo de aproximação compassiva com os ninivitas. Mas, do inconsciente vinha a mensagem em sentido contrário, porque, na verdade, o inconsciente opera no sentido de corrigir as atitudes erradas do ego. A salvação, portanto, está na conversão do ego ao inconsciente, isto é, ao chamado do espírito: "Andai em Espírito, e não cumprireis a concupiscência da carne." Gl. 5:16

No sentido bíblico, é a tomada de consciência do que está no oculto. Por exemplo, Jacó, ao ter o sonho da escada que ia do céu à terra, com os anjos subindo e descendo; ao acordar, disse: "O Senhor está neste lugar, e eu não sabia..." (Gn. 28:16). O lugar da presença de Deus, outrora ignorada, não era geográfico, mas existencial. A perdição é o movimento do ego para o mundo de fora, no sentido de "ganhar o mundo inteiro." E a tal ponto se afasta que perde a alma. A propósito, alma em grego é psique.

Quando a Escritura diz: "Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz, eu entrarei, cearei com ele, e ele comigo", está apontando para um encontro entre o Espírito de Deus e o espírito do homem (I Co. 2:11). Essa interface ocorre na psique, envolvendo a vontade consciente e um chamado crístico inconsciente, autônomo, que ocorre independente da vontade do ego. No caso de Jonas, a vontade consciente se debatia contra a chamada interior. Por isso, ele fugiu de Deus. Na verdade, fugiu de si mesmo. 

2. A fuga - É natural para o ego a fuga para bem distante do centro organizador da psique: o self. Isso se dá porque o ego busca autonomia total, quer decidir seu próprio destino, como representado, também, no relato da queda (Gn. 3). O objetivo da fuga é o de salvar sua própria ilusão, a identidade construida para si, que lhe dá sentido. Mas, o inconsciente é autônomo e normalmente se posiciona de maneira averssa ao consciente. Isso está claro, psicoteologicamente falando, quando a Bíblia diz: "Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os meus caminhos, os vossos caminhos." Is. 55:8

O ego é salvo quando se rende voluntariamente ao chamado das profundezas (Jo. 6:44), assume seu calvário - esse é o significado de tomar "a cruz de cada dia" - e ressuscita para o Self.  Ocorre um novo nascimento, em que o centro orientador migra da superfície para o interior (Lc. 17:21; Ef. 3:16). Por isso, Paulo diz que vive a vida cotidiana a partir de um centro orientador interno, crístico: "Não mais vivo eu, mais Cristo vive em mim, e  a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé no filho de Deus, o qual me amou e a si mesmo se entregou por mim" (G. 2:20). É por isso que somos recomendados a andar "em espírito" (Gl. 5:16), ou seja, em sintonia com o inconsciente. Se a porção crística em nossa alma é o self, que orienta e produz completude, é compreensivel, e belo, o que Jesus disse: "...Sem mim, nada podeis fazer." Jo. 15:5b

Por outro lado, ao fugir do chamado que ocorre em seu "homem interior", o ego sofre as penalidades devidas, pois, "tudo que o homem semear, também ceifará" (Gl. 6:7).  Se a salvação consiste no retorno ao fundamento, o inferno consiste no afastamento. Quanto mais afastado do self, mas infernal e "infernizado" se torna o ego. Os céus da psique se revoltam e enviam  tempestades pequenas ou de proporções gigantêscas, a fim de corrigir ou anular o transgressor. Os planos do mundo espiritual, isto é, do inconsciente, "não podem ser frustrados." O pior de tudo é que, as escolhas de ego que fazemos, com suas consequências, não  atingem a nós somente: aqueles que estão próximos, são atingidos sem que nada devam. Os marinheiros nada tinham a ver com a desobediência de Jonas, mas estavam igualmente ameaçados. Agora, entendo melhor, porque  a Bíblia diz que Deus visita"a maldade dos pais, nos filhos, até terceira e quarta geração..." Esse é mais um exemplo do caráter solidário da raça humana, pois, o que escolhemos fazer no plano individual, toca a coletividade.

3. O sacrifício do ego - o começo da redenção

Psicologicamente, o confronto de Jonas com os marinheiros, o confronto saudável do ego com a sombra, o lado pagão, rejeitado, negado e reprimido de cada um de nós. Na verdade, assim como a queda é fruto da inflação do ego em contato com a serpente, a redenção é fruto do autosacrifício do ego em contato com a mesma serpente, seja ela real ou imaginada. Nesse sentido, o ego faz o caminho contrário àquele que fizera anteriormente. No caso, Jonas pede para ser lançado no mar, pois, o problema não são os pagãos que ele tanto rejeita. Deus está irado com o próprio Jonas, e ele sabendo disso, rende-se e se entrega às profundezas. Assim, os marinheiros pagãos são salvos. psicologicamente, isso significa que só nos salvamos quando salvamos nossa sombra, pois se ela sucumbe, nós, também. Até porque, há muita vida em nossa sombra, em nosso lado escuro, que só é escuro por que rejeitado.

4. Trës dias no ventre do grande peixe

O ego engolido pelas profundezas de si mesmo é o ego potencialmente salvo. Enquanto permanece na superfície, inflacionado, agarrado às suas certezas, fugindo do encontro com Deus - que ocorre num nível diferente do nível institucional - o ego adoece e atrái destruição para si e para os outros ao seu redor. No momento em que se deixa lançar às águas profundas, deixa saúde no ambiente de superfície e mergulha num processo de restauração pessoal de proporções inimagináveis, "como está escrito: as coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as que Deus preparou para os que o amam." I Cor. 2:9

http://espiritualidadedavidacotidiana.blogspot.com.br/2010/09/psicoteologizando-no-livro-de-jonas.html

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